O Enigma do Vigilante

Governos Recorrem A Civis Armados Para Combater Rebeldes E Extremistas, Mas Esta Táctica Implica Uma Série De Desafios

EQUIPA DA ADF

Logo após a Assembleia Nacional do Burquina Faso ter aprovado por unanimidade o armamento de voluntários civis para ajudar a combater os extremistas, em Janeiro de 2020, os riscos eram claros.

Apesar de duas semanas de formação, de uma idade mínima de 18 anos e de uma “investigação moral,” a táctica parecia arriscada. “Não se trata de fazer carne para canhão,” disse o então Ministro da Defesa, Chérif Sy. “Queremos evitar que estes voluntários se tornem milícias.”

Corrine Dufka, directora da Human Rights Watch para a África Ocidental, citando casos documentados de abusos cometidos por soldados burquinabês, tem uma perspectiva sombria. “Este novo plano de subcontratação de operações de segurança a civis ameaça levar a ainda mais abusos,” disse na altura à Al Jazeera.

A utilização de civis armados no sector da segurança nacional levanta muitas questões: Como é que o governo pode impedir que civis mal treinados violem os direitos humanos? Como é que os vigilantes evitarão a tentação de atacar grupos étnicos rivais? Como é que os combatentes vão distinguir entre extremistas armados e civis armados quando o nevoeiro da batalha baixar? E como é que os governos que autorizaram o armamento de civis os vão desarmar efectivamente quando os seus serviços já não forem necessários?

“Quanto mais claros forem os objectivos e o mandato dos vigilantes e quanto maior for a supervisão por parte dos líderes nacionais e locais, das forças armadas do Estado e das comunidades locais, mais eficaz será o grupo e menos provável será que se afaste dos objectivos de defesa da comunidade e de contra-insurgência,” afirma um relatório de 2017 do International Crisis Group.

No entanto, continua o relatório, os Estados frágeis são mais susceptíveis de depender de vigilantes e são menos capazes de os policiar e impedir os seus abusos. 

O mesmo se verificou no Burquina Faso. Em Junho de 2020, um relatório da Assembleia Nacional afirmou que havia uma “inadequação dos recursos” reservados para treinar, supervisionar e fiscalizar os Voluntários para a Defesa da Pátria (VDP) do país, de acordo com um documento de 2021 de Antonin Tisseron intitulado “Caixa de Pandora. Burquina Faso, milícias de autodefesa e Lei VDP na luta contra o jihadismo.” 

Um membro da Força-Tarefa Conjunta Civil revista um homem à entrada da cidade de Damasak, na Nigéria. AFP/GETTY IMAGES

CARACTERÍSTICAS DOS GRUPOS DE VIGILANTES

O Burquina Faso não é a única nação do continente a depender de civis armados para a sua segurança. Alguns esforços melhoraram a segurança, mas os riscos parecem rivalizar com os benefícios. Os grupos armados de vigilantes têm uma longa história em África. A Serra Leoa tinha um grupo chamado Kamajors, que estava armado para se proteger contra os rebeldes da Frente Revolucionária Unida na década de 1990. No Uganda, os Arrow Boys foram formados em 2005. Protegeram os civis dos extremistas do Exército de Resistência do Senhor.

Os vigilantes são um subgrupo das milícias armadas não estatais e são “geralmente entendidos como grupos a que cidadãos preocupados se juntaram para autoprotecção em condições de desordem local,” de acordo com o relatório de 2023 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), “Understanding and Managing Vigilante Groups in the Lake Chad Basin Region.” 

Os grupos de vigilantes, escrevem os autores, são marcados por três características principais: tendem a ser grandes e a ter acesso a armas; têm a capacidade de impor violência que pode alterar o equilíbrio da paz; e não fazem parte de instituições formais de segurança do Estado, embora possam ter algumas relações com esses grupos.

Também se enquadram normalmente em três grandes categorias. Alguns foram organizados para combater o extremismo violento, como a Força-Tarefa Conjunta Civil (CJTF, na sigla inglesa) no nordeste da Nigéria. A CJTF é talvez o grupo mais conhecido do seu género no continente. Outros formam-se para combater o crime. O terceiro tipo é “manipulado pelo Estado para atingir rivais étnicos, religiosos ou políticos,” afirma o relatório.

A CJTF foi formada na sequência do massacre de Baga, em Abril de 2013, em que se descobriu que os soldados nigerianos mataram cerca de 200 civis e queimaram 2.000 casas e empresas após um ataque do Boko Haram a um posto militar, refere o relatório do PNUD. Esse ataque matou um soldado.

“Surpreendentemente, o que aconteceu a seguir não foi uma radicalização dos civis vitimados no Estado de Borno, mas sim o surgimento de vigilantes anti-Boko Haram ansiosos por trabalhar com as forças de segurança nigerianas no volátil Estado para repelir os extremistas do Boko Haram e proteger as suas comunidades,” afirma o relatório.

Pensa-se que a CJTF tenha cerca de 30.000 membros espalhados pelo Estado de Borno. Depois de o governo ter reconhecido formalmente o grupo em 2013, o Programa de Capacitação da Juventude de Borno, patrocinado pelo Estado, inscreveu 1.850 membros da CJTF num curso de formação paramilitar de quatro semanas. Alguns receberam formação no Centro Internacional de Formação para a Manutenção da Paz Kofi Annan, no Gana. Os membros da CJTF também recebem uma bolsa mensal de 48 dólares. Inicialmente, os vigilantes estavam armados com arcos e flechas, facas, catanas e paus. Mais tarde, alguns receberam formação e foram autorizados a transportar espingardas de acção directa.

No início, a CJTF registou vitórias significativas contra os insurgentes, o que ajudou a expulsar o Boko Haram de Maiduguri, de acordo com um relatório elaborado para a ADF pelo Dr. Ernest Ogbozor, um perito nigeriano no combate ao extremismo violento na Bacia do Lago Chade. 

Depois de algum sucesso, o grupo passou a ser associado ao assassinato de suspeitos, à utilização de crianças nas suas fileiras, ao suborno e à extorsão nos postos de controlo, ao roubo de gado, ao tráfico de bens roubados e à exploração de mulheres, refere o relatório do PNUD. Os vigilantes da CJTF também foram acusados de torturar militantes do Boko Haram e outros prisioneiros durante o interrogatório.

Homens esperam para se integrarem nos Voluntários para a Defesa
da Pátria em Ouagadougou, Burquina Faso. AFP/GETTY IMAGES

As forças dos VDP do Burquina Faso, patrocinadas pelo governo, sofreram pesadas baixas na sua luta contra os extremistas violentos, de acordo com um relatório de Dezembro de 2023 do International Crisis Group. Os civis são apanhados no meio dos combates. O Presidente Ibrahim Traoré, um capitão do exército que tomou o poder num golpe de Estado em Setembro de 2022, recrutou e armou mais 50.000 membros dos VDP, o que representa um aumento significativo do recurso a civis armados contra os extremistas do grupo do Estado Islâmico e apoiados pela al-Qaeda, que os militares não conseguiram conter.

Para além de serem empurrados para a linha da frente com um treino inadequado, alguns destes combatentes burquinabês estão a atacar civis, como os de etnia Fulani, que, em grande parte, não foram recrutados por se pensar que poderiam estar em conluio com os extremistas. A presença dos VDP também expõe os não-combatentes a represálias extremistas.

“Agora que as autoridades colocaram os VDP no centro do seu plano de segurança, não podem recuar instantaneamente sem correr o risco de minar a segurança,” refere o relatório do Crisis Group. “Além disso, os VDP são uma base importante para o Presidente Traoré.”

O governo da República Democrática do Congo também está a contar com a ajuda de milícias civis armadas. Em Novembro de 2022, o Presidente Félix Tshisekedi apelou aos jovens para que organizassem “grupos de vigilância” e apoiassem o exército contra os rebeldes do M23 no leste do país.

 O site de notícias Afrikarabia relata que o “Wazalendo” é muito provavelmente uma amálgama de oito a 10 grupos armados que usam o nome, que significa “patriotas” em Kiswahili. O investigador Henry-Pacifique Mayala disse à Afrikarabia que “quando vemos a intensidade dos combates e a sua duração, parece claro que os Wazalendo foram equipados com armas e munições e beneficiam de apoio logístico.”

Inicialmente, os grupos civis podem apoiar o governo na luta contra os extremistas e outras milícias, mas o facto de os armar acarreta muitos riscos. O analista de segurança David Egesa, baseado no Uganda, disse ao serviço noticioso da Agência Anadolu que os grupos armados poderão ajudar a defender-se do M23 a curto prazo, mas que isso também poderá fortalecer os grupos de milícias. A RDC “pode discretamente permitir que as milícias trabalhem em conjunto contra o M23,” disse. “Mas um jogo tão distorcido pode, a longo prazo, encorajar as milícias… é uma situação perigosa.” 

Membros da Força-Tarefa Conjunta Civil patrulham em Maiduguri, na Nigéria. REUTERS

GESTÃO DE GRUPOS ARMADOS

O relatório do PNUD sobre os civis armados da Bacia do Lago Chade observa que “a negligência do governo em relação às frustrações e expectativas dos vigilantes pode ser uma receita para os problemas. … Para o bem ou para o mal, os vigilantes vieram para ficar.”

Mais uma vez, a experiência do Burquina Faso confirma estas preocupações. Antes da formação dos VDP, os extremistas visavam sobretudo as forças de segurança do Estado e os seus representantes, de acordo com um relatório de 2021 do Centro Internacional de Combate ao Terrorismo. Actualmente, as forças auxiliares civis são os principais alvos. Nos primeiros seis meses de 2021, os extremistas mataram cerca de 200 voluntários civis — mais do que o número de soldados burquinabês mortos durante o mesmo período.

Este facto confirma as preocupações iniciais de que a criação dos VDP iria redireccionar a violência dos insurgentes para os civis.

Apesar dos muitos riscos associados à utilização de forças civis voluntárias, o relatório do PNUD oferece 13 directrizes para gerir e supervisionar esses grupos “bem como para mitigar os seus efeitos adversos nos civis em conflito.” Uma amostra dessas orientações inclui:

Centenas de voluntários cantam enquanto esperam no exterior do Aeroporto Internacional de Goma, na República Democrática do Congo, em Novembro de 2022 antes de embarcar num avião para um centro de formação. AFP/GETTY IMAGES

Assegurar a regulamentação e a supervisão: Isso pode incluir códigos de conduta e regras de envolvimento.

Oferecer assistência não letal: O apoio pode incluir detectores de metais, equipamento de segurança, telemóveis e transporte.

Aumentar a responsabilização: As autoridades devem investigar todas as alegações credíveis de violações de direitos humanos, crimes e abusos. Tal deve incluir acções empreendidas com as forças de segurança do Estado. A justiça deve ser rápida e transparente.

Proibir a utilização de crianças combatentes: Os vigilantes não devem ser autorizados a recrutar e a utilizar crianças. No Estado de Borno, na Nigéria, a CJTF e a ONU acordaram um plano de acção para 2017 com vista a proibir a utilização de crianças.

Limitar os vigilantes à recolha de informações: A maior parte dos grupos de vigilantes já são utilizados para este fim. Limitar o seu papel a medidas defensivas, como o rastreio de pessoas e bens, evita os muitos problemas inerentes ao seu armamento.

Verificar os membros do grupo: Deste modo, será possível eliminar os criminosos e as pessoas com um historial de queixas por parte dos membros da comunidade.

Compensá-los adequadamente: Reconhecer o serviço com cuidados de saúde, educação e “assistência aos meios de subsistência sustentáveis.” Aqueles que demonstram um comportamento excepcional podem ser considerados para alistamento em unidades policiais mais formais. Ser claro desde o início sobre as expectativas e a disponibilidade relativamente à remuneração.

Estabelecer e financiar planos de desmobilização claros: Uma vez terminada a violência, os vigilantes terão de ser desarmados, desmobilizados e reintegrados. Os recursos devem ajudar os vigilantes a encontrar emprego em sectores relevantes a nível local. Os membros do grupo devem participar na criação destes programas.  

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