Construindo Um Modelo Africano Para A Paz

As Operações de Paz Lideradas por Africanos Preenchem uma Lacuna Para Lidar Com Algumas das Mais Difíceis Ameaças à Segurança, Mas Enfrentam um Futuro Incerto

EQUIPA DA ADF

Durante décadas, as Nações Unidas foram a principal instituição a supervisionar as missões de manutenção da paz em África. Mas a ONU não lança uma nova missão desde 2014, e as suas missões no Mali e na República Democrática do Congo foram forçadas a encerrar devido à crescente insegurança e à resistência dos países anfitriões.

À medida que a ONU recua, as instituições africanas estão a dar um passo em frente. A União Africana e as organizações regionais supervisionam 10 operações de paz com mais de 70.000 homens e mulheres a prestar serviço em 17 países. Em 2022, a UA igualou o seu maior total de novas missões ao lançar quatro operações de paz.

Muitos observadores defendem actualmente que o futuro das intervenções no continente será liderado por africanos. Estas missões, sob a égide de instituições africanas e principalmente com soldados africanos, são, no seu melhor, ágeis, rápidas a responder e dispostas a combater agressivamente os inimigos de uma forma que as missões da ONU não são.

“As OAP [operações de apoio à paz] lideradas por africanos demonstraram uma riqueza de experiência, competências, capacidade e conhecimentos, apesar dos recursos e financiamento limitados,” o Dr. Andrew Yaw Tchie, do Instituto Norueguês de Assuntos Internacionais, escreveu num artigo para a revista Global Governance. “As OAP lideradas por africanos encontram-se num ponto único para não só se ajustarem e adaptarem, mas também para se tornarem um trunfo fundamental para lidar com a instabilidade futura e continuarem a colmatar uma lacuna que as OMP da ONU não conseguiram colmatar totalmente.”

As forças de manutenção da paz africanas já se encontram entre as mais experientes e testadas em combate no mundo. Em 2000, as forças de manutenção da paz africanas constituíam cerca de 20% de todas as forças em missões da ONU. Em 2020, esse número terá aumentado para mais de 50%.

Mas subsistem dúvidas quanto à forma como a próxima geração de missões será construída e mandatada. Que tipos de crises procurarão resolver? Quem é que as vai financiar? Podem trabalhar para resolver conflitos através do diálogo? Enquanto os líderes traçam o caminho a seguir, está a desenvolver-se um modelo africano único de como, quando e onde intervir.

Um soldado burundês que serve na Missão de Transição da União Africana na Somália vigia a partir de um veículo blindado de transporte de pessoal no Estado de Hirshabelle. ATMIS

Diferentes Formas para Diferentes Problemas

Uma das vantagens das missões lideradas por africanos é a sua versatilidade. Há missões de grande escala mandatadas pela UA, como a missão na Somália, que começou em 2007 e incluiu até 20.000 soldados. Existem também missões mais pequenas autorizadas pelas comunidades económicas regionais (CER), como a intervenção de 630 pessoas da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) na Guiné-Bissau, criada para ajudar a estabilizar o país após uma tentativa de golpe de Estado. Por último, existem missões ad hoc criadas a partir de uma coligação de países para fazer face a uma ameaça comum, como o terrorismo ou o banditismo. Um exemplo disso é a Força-Tarefa Conjunta Multinacional, composta por 10.000 pessoas dos países da Bacia do Lago Chade, em resposta ao terrorismo e à criminalidade.

A Arquitectura Africana de Paz e Segurança da UA orienta estas missões, mas muitas são agora bastante independentes da UA. Em 2023, apenas três das 10 operações de paz lideradas por África eram mandatadas pela UA e apoiadas financeira e logisticamente pela UA. Outras, como a Missão da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral em Moçambique (SAMIM), são organizadas por uma CER e operam no âmbito da Força Africana em Estado de Alerta (ASF, na sigla inglesa) da UA.

Os observadores dizem que a evolução para um maior controlo local das missões é positiva. Dizem que os organismos regionais e os países vizinhos têm mais interesse nos resultados do que as forças de manutenção da paz vindas de longe.

“Quando se trata de impor a paz, a motivação dos países que contribuem com tropas é fundamental,” o Major-General Richard Addo Gyane, comandante do Centro de Formação de Manutenção da Paz Kofi Annan, disse à ADF. “Se acontecer alguma coisa na Nigéria, prefiro ir lutar, porque sei que pode afectar facilmente o Gana. Há algo por que lutar.”

Do mesmo modo, estas coligações regionais podem ser formadas e implementadas mais rapidamente do que as desenvolvidas através de um processo burocrático lento. O protocolo de 2002 que criou a ASF previa que cada região do continente pudesse enviar um batalhão de intervenção em 14 dias. Esta urgência foi exigida por actos de violência em massa ocorridos no passado, em que a intervenção internacional chegou demasiado tarde para salvar vidas.

ropas ruandesas preparam-se para partir para Moçambique a fim de ajudar o país a combater uma insurgência. Reuters

Embora a estrutura da ASF se encontre em diferentes níveis de prontidão, o Dr. Cedric de Coning, conselheiro sénior do Centro Africano para a Resolução Construtiva de Litígios e perito em manutenção da paz, afirmou que a rapidez deve ser um dos maiores trunfos das operações de paz lideradas por africanos. Segundo ele, as intervenções têm sido mais eficazes utilizando um modelo do tipo “na hora exacta,” em que as coligações de países são criadas para intervir rapidamente quando surge uma crise.

“A vantagem comparativa da UA e de todos os países africanos é o facto de poderem ser mobilizados rapidamente e de estarem dispostos a ser mais robustos,” disse de Coning.

Tchie disse que esta rapidez e auto-suficiência é uma mudança radical em relação às missões anteriores, em que os países tinham de esperar pela aprovação de um organismo internacional ou de um apoiante ocidental. “Estão a fazer a maior parte da logística e estão a utilizar a maior parte do seu próprio equipamento,” Tchie disse à ADF. 

“Trata-se de Estados da linha da frente que estão a pôr os seus activos à disposição para poderem realizar estas operações. Isso é muito diferente do modelo tradicional da ONU, em que se espera que todos se comprometam.”

Uma Filosofia de ‘Não Indiferença’

Em 2019, a UA adoptou uma doutrina de Operações de Apoio à Paz que deixou claro que estava disposta a intervir em cenários que a ONU tradicionalmente evita. O documento sublinha que o organismo continental passou de uma filosofia de não intervenção nos assuntos dos Estados-membros para uma filosofia de “não indiferença.”

“A não indiferença significa que a UA e os seus Estados-membros não ficarão de braços cruzados e não tomarão medidas, podendo actuar mesmo quando não há paz para manter, para prevenir e/ou responder a circunstâncias graves, nomeadamente: crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio,” afirma a doutrina. “Trata-se de uma obrigação dos Estados-membros da UA.”

A doutrina também permite intervenções sem o consentimento do Estado-membro para pôr termo a atrocidades em massa. Mas, na prática, a UA nem sempre interveio quando um país-membro se encontrou em crise. As guerras civis na Etiópia e no Sudão não suscitaram uma missão da UA. Os militares conduziram golpes de Estado em todo o continente, em grande parte sem a intervenção da UA ou das CER.

As operações de paz lideradas por africanos não respeitam frequentemente o princípio fundador da UA de não indiferença aos líderes que, através de crimes de guerra, genocídios ou tomadas de poder inconstitucionais, abusam dos seus cidadãos,” escreveu o Dr. Nathaniel Allen no documento do Centro de Estudos Estratégicos de África, “Operações de Paz Lideradas por Africanos: Um Instrumento Crucial para a Paz e a Segurança.”

As missões lideradas por africanos têm tido melhores resultados na luta contra os grupos extremistas violentos. Seis das 17 missões lideradas por africanos nos últimos 10 anos foram em resposta ao extremismo islâmico radical. Estas missões em locais como Moçambique, Somália e a Bacia do Lago Chade adoptam uma abordagem musculada e de ritmo elevado às operações de apoio à paz. Isso difere da ONU, que normalmente só está disposta a intervir para fazer cumprir um cessar-fogo ou um acordo de paz assinado.

As instituições africanas também mostraram vontade de lançar operações para restaurar a ordem constitucional, como a missão da CEDEAO de 2017 na Gâmbia. Também foram lançadas missões para garantir eleições livres e justas, em resposta a catástrofes naturais ou crises sanitárias, como o surto de Ébola na África Ocidental, e para combater grupos extremistas violentos, como o Exército de Resistência do Senhor.

“Não existe uma operação de paz liderada por africanos que se possa chamar de modelo,” escreveu Allen.

Tropas do Burundi que servem na Missão de Transição da União Africana na Somália entram a bordo de um helicóptero das Nações Unidas no Estado de Hirshabelle. ATMIS

O Desafio do Financiamento

Mesmo quando existe a vontade de intervir, o financiamento é um desafio. Muitas missões lideradas por africanos dependem em grande medida do apoio dos doadores.

A única missão recente que se tornou financeiramente auto-sustentável foi a SAMIM, descobriu Tchie na sua investigação. Outras missões necessitaram de apoio para durar mais de 30 dias.

Este facto não é surpreendente, uma vez que a própria UA depende do apoio dos doadores para cerca de 70% do seu orçamento e declarou que mais de 40% dos Estados-membros não pagam as suas quotas anuais. O Fundo da UA para a Paz, criado em 2002 para apoiar as operações, encontra-se sem fundos. Mesmo o objectivo do Fundo para a Paz de 400 milhões de dólares não é suficiente para sustentar missões a longo prazo, dizem os especialistas.

Há algumas razões para optimismo. Em Dezembro de 2023, o Conselho de Segurança da ONU adoptou por unanimidade uma resolução que lhe permitirá considerar a possibilidade de apoiar o orçamento das missões de manutenção da paz lideradas pela UA numa base casuística.

Mas, segundo os observadores, no futuro, estas missões devem ser auto-sustentáveis.

“Ao evitar a dependência de parceiros, as OAP lideradas por africanos podem reduzir os seus custos de transacção, evitar a perda de agência e conceber missões de acordo com os meios financeiros dos organismos e dos Estados-membros que enviam estas operações,” escreveram Tchie e de Coning num artigo para o Journal of International Peacekeeping.

Priorizar a Resolução de Conflitos

Embora as missões lideradas por africanos tenham demonstrado capacidade para combater as insurgências e proteger os civis, o processo de construção de uma paz duradoura é, muitas vezes, difícil de alcançar. As missões lideradas por africanos são essencialmente missões militares com objectivos militares.

Embora a maioria das missões da UA seja dirigida por um representante civil do presidente da UA, o seu pessoal é quase exclusivamente militar. As missões dispõem de um pequeno pessoal civil para tratar de questões complexas que estão na origem dos conflitos, tais como assuntos políticos, questões jurídicas, necessidades humanitárias, desarmamento, desmobilização e reintegração e outros assuntos.

Tchie e de Coning acreditam que estas futuras missões terão de dar prioridade a uma resolução política dos conflitos e abordar os factores de instabilidade subjacentes. Para tal, será necessário um maior investimento na componente civil de uma operação de paz. Consideram que devem ser envidados esforços militares para abrir espaço para a negociação. Desta forma, é possível chegar a um acordo político duradouro.

“Se os factores subjacentes não forem resolvidos, o conflito não será resolvido e a violência voltará,” escreveram Tchie e de Coning.

Em muitos países, as missões conseguiram silenciar as armas, para depois assistir a um rápido regresso à violência, porque as partes em conflito não participaram num processo de paz e os factores subjacentes à violência não foram abordados. A UA dispõe de mecanismos de alerta precoce de conflitos e de mediação para a resolução de litígios, mas os peritos dizem que estes estão subdesenvolvidos.

“Servir um projecto político ou um processo de paz é fundamental para a credibilidade e legitimidade de qualquer OAP liderada por africanos,” escreveram Tchie e de Coning. “Sem um projecto político, não há um estado final sustentável ou uma estratégia de saída.”

À medida que as missões lideradas por africanos evoluem, a sua capacidade de responder a ameaças complexas terá implicações importantes para a prosperidade e estabilidade do continente.

“Não é exagero argumentar que a paz e a segurança futuras no continente dependem do crescimento e evolução contínuos das modalidades africanas de prevenção e resolução de conflitos,” escreveu Allen. “Para atingir todo o seu potencial, a UA, as CER e os Estados-membros devem reforçar os êxitos e resolver as deficiências das operações de paz lideradas por africanos.”  

Comentários estão fechados.