Mercenários: um Acessório numa RCA Assolada pela Guerra

Combatentes Estrangeiros Aproveitam-se do Caos para Enriquecimento Próprio

EQUIPA DA ADF

Mercenários russos têm sido associados a abusos de direitos humanos e têm vindo a tirar proveito do caos na República Centro-Africana (RCA), um dos países mais pobres do mundo, apesar de possuir uma grande quantidade de recursos naturais.

Em Março de 2021, especialistas independentes em matérias de direitos indicados pelas Nações Unidas alegaram que, na RCA, o recrutamento e a utilização de “exércitos privados e contratados estrangeiros para a área de segurança,” provenientes da Rússia e do Sudão, estavam a aumentar os riscos de abusos generalizados de direitos humanos.

Na mesma altura, o presidente daquele país estava a empregar mercenários russos como guarda-costas pessoais. Os mercenários russos tinham contacto com cerca de 15.000 soldados da manutenção da paz envolvidos na Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana (MINUSCA, na sigla inglesa).

Os especialistas em matérias de direitos, conforme comunicou a ONU, disseram que este tipo de exército pessoal privado estava associado a relatos de “execuções em massa, detenções arbitrárias, tortura durante interrogatórios, desaparecimentos forçados, deslocação forçada de populações civis, ataques indiscriminados a instalações civis, violação do direito à saúde e aumento dos ataques a intervenientes humanitários.”

Um soldado do exército da República Centro-Africana junto da Catedral de Bangassou. Centenas de rebeldes atacaram Bangassou, em Janeiro de 2021, e foram responsáveis pela fuga de dezenas de milhares de pessoas. AFP/GETTY IMAGES

Em 2019, um antigo funcionário do governo disse ao The New York Times que os mercenários russos utilizaram aviões privados perto de uma instalação da RCA, onde treinaram soldados locais. Segundo o jornal, carregaram os aviões com diamantes. “De acordo com os funcionários locais e senhores da guerra, os contratantes russos estavam também a extrair diamantes perto da fronteira com o Sudão.”

UMA HISTÓRIA DE REBELIÃO

Depois da sua independência, em 1960, o país raramente teve estabilidade. Ultimamente tem estado numa situação de constante conflito desde que os rebeldes assumiram o controlo da capital, em Março de 2013. A luta dos rebeldes no país obrigou cerca de um quarto dos 4,5 milhões de habitantes a fugirem das suas casas. Os grupos de milícias rivais controlam grande parte da nação.

A população elegeu Faustin-Archange Touadéra, um antigo primeiro-ministro, como presidente, em 2016. Touadéra foi reeleito no final de 2020, numas eleições em que alguns cidadãos da RCA não puderam participar devido a situações de violência. Cerca de 14 por cento das 800 assembleias de voto da nação ficaram encerradas. 

Nas semanas que antecederam as eleições de 2020, peritos da ONU, responsáveis por fazer a monitoria do embargo de armas na RCA, mencionaram um “afluxo de combatentes estrangeiros” no país. A ONU afirmou que houve uma série de confrontos “com a chegada de guerrilheiros estrangeiros e armamento, principalmente vindos do Sudão.”

A violência eleitoral obrigou 120.000 pessoas a fugirem, metade das quais procuraram refúgio em países vizinhos.

O Conselho de Segurança da ONU aprovou um aumento de cerca de 3.700 militares e agentes da polícia para a MINUSCA, em Março de 2021, para ajudar a inverter a deterioração das condições de segurança. Uma deliberação do conselho, adoptada por uma votação de 14-0, em que a Rússia se absteve, estabeleceu um limite de 14.400 militares e 3.020 agentes da polícia.

As eleições, no final de 2020, podem ter sido um momento decisivo para a história do país. Poucos meses antes, o país recrutou cerca de 1.500 novos funcionários para as suas forças internas de segurança, 800 alunos da polícia e 550 alunos da polícia militar, incluindo 138 mulheres. Nas semanas que antecederam as eleições, grupos rebeldes começaram a atacar as forças de segurança do país. Como referiu a revista Foreign Policy, a comunidade internacional foi apanhada desprevenida quando foram divulgadas as notícias sobre o controlo de sucessivas cidades pelos grupos rebeldes.

“Após alguns dias, a Rússia enviou para Bangui 300 ‘conselheiros militares,’ bem como mais tropas e helicópteros,” comunicou a revista. “O Ruanda destacou centenas de tropas não ‘restringidas’ pelas regras de empenhamento da ONU; e a MINUSCA recebeu reforços, incluindo 300 (soldados da manutenção da paz da ONU provenientes do Ruanda) posicionados no Sudão do Sul.”

O pessoal adicional ajudou a restaurar a ordem na maioria das cidades. A MINUSCA recuperou a cidade de Bambari, mas perdeu três soldados da missão de manutenção da paz. As Forças Armadas da República Centro-Africana (FACA), em conjunto com ruandeses e uma empresa de mercenários privados russos, recuperaram as cidades de Boali, Bossembélé e Mbaiki.

Duas raparigas correm entre abrigos improvisados numa aldeia da República Centro-Africana. Cerca de 240.000 pessoas foram deslocadas pelos ataques rebeldes em meados de Dezembro de 2020. THE ASSOCIATED PRESS

Em 2021, a revista Foreign Policy afirmou que “cidadãos comuns ficaram numa situação de maior perigo, devido ao precário equilíbrio de mudança de poder entre os políticos locais, intervenientes internacionais e grupos armados.”

Viola Giuliano, do Centro para Civis em Conflito (CIVIC), disse à revista que “existem duas forças de defesa.” “A primeira é a guarda presidencial, que tem acesso privilegiado a equipamento e meios,” afirmou. “A segunda, as FACA ‘normais’, é destacada para fora de Bangui e em condições deploráveis. Não possuem combustível para fazer as patrulhas. Os salários não são pagos há meses e a rotatividade é, muitas vezes, atrasada.”

NEGÓCIOS EM ÁFRICA

O interesse da Rússia na RCA faz parte de uma estratégia mais ampla: venda de armas e maior influência em África. A Rússia fornece cerca de metade das exportações mundiais de armas ao continente. 

Devido à instabilidade política e às violações dos direitos humanos, a ONU impôs, em 2013, um embargo de armas à RCA e às FACA. Em Dezembro de 2017, a Rússia teve uma derrogação e forneceu armas e treinamento à RCA.

A Rússia aproveitou esta oportunidade para assumir um papel mais importante na segurança da RCA e outros assuntos governamentais. O Instituto da Paz dos Estados Unidos reportou que a Rússia tem uma “passagem directa” ao governo da RCA, através de Valery Zakharov, um antigo oficial de inteligência russo, que desempenhou as funções de conselheiro de segurança nacional de Touadéra.

Em 2019, Touadéra viajou à Rússia para participar na primeira Cimeira Rússia/África, que reuniu centenas de líderes africanos. O instituto afirmou que tinha como objectivo “realçar e garantir a crescente influência da Rússia no continente.”

Depois de reunir-se com o presidente russo, Vladimir Putin, Touadéra terá pedido um maior fornecimento de armas russas. Afirmou também que estava a considerar acolher uma base militar russa no seu país.

Presidente da República Centro-Africana, Faustin-Archange Touadéra, cumprimenta os seus apoiantes ao chegar a um comício eleitoral, escoltado pela guarda presidencial, empresas de segurança russas e soldados ruandeses da missão de manutenção da paz da ONU, em Dezembro de 2020. AFP/GETTY IMAGES

“Os militares russos na RCA, com tropas adicionais perto do Sudão, garantem o acesso dos intervenientes estatais às actividades directas que beneficiam a Rússia, em áreas controladas pelos rebeldes e com considerável importância em termos de recursos naturais,” escreveu o investigador Kyran Goodison, num estudo intitulado “Russia in the Central African Republic: Exploitation Under the Guise of Intervention.”

“O impacto do controlo dos recursos da RCA é acentuado pelo acesso marítimo russo no Sudão. Em conjunto, as armas russas e o pessoal para treinamento aprovados a nível internacional criam os meios necessários para que a Rússia possa tirar proveito do conflito da RCA,” escreveu Goodison.

ENVOLVIMENTO DO GRUPO WAGNER 

Os russos na RCA incluem o Grupo Wagner, uma empresa militar privada russa, gerida por Yevgeny Prigozhin, um aliado de Putin. Há motivos para admitir que se trata de um braço dissimulado dos militares russos, o que proporciona à Rússia a negação de envolvimento nos assuntos de outros países. O grupo interferiu em assuntos de vários países em África e outras partes do mundo e opera em pelo menos 20 países africanos. 

O Grupo Wagner age como uma empresa de segurança na RCA e desempenha um papel importante no treinamento dos guardas presidenciais e do exército. Alguns mercenários do Grupo Wagner encontram-se estacionados no Berego Palace, que, na década de 1970, foi o quartel-general de Jean-Bedel Bokassa, o autoproclamado imperador do país, e tornou-se, desde então, uma base militar.

“Contratados militares privados, como o Grupo Wagner, financiados através de concessões militares locais, ergueram a bandeira russa em África,” reportou a Foreign Policy. A RCA, “por sua vez, recebe assistência técnica para as forças armadas que nenhum outro país está disposto a dar.”

Forças de manutenção da paz da ONU e pessoal de segurança privada protegem a coluna do Presidente da República Centro-Africana, Faustin-Archange Touadéra, durante as eleições legislativas, em Março de 2021. AFP/GETTY IMAGES

A página da internet de notícias militares, Special Operations Forces Report, escreveu, em 2020, que havia 180 instrutores do exército “oficial” russo destacados na RCA, bem como 1.000 contratados “civis” russos do Grupo Wagner. 

A NECESSIDADE DE REFORMA

Os grupos rebeldes armados são um dos principais responsáveis pela instabilidade na RCA. Obrigaram as pessoas a saírem das suas casas, interromperam as rotas comerciais e impediram a ajuda humanitária. Antes de a MINUSCA ser destacada, havia três principais grupos armados reconhecidos na RCA. Actualmente existem 14 grupos. 

O país está numa situação de crise e necessita de ajuda externa. A Foreign Policy afirmou que o país recebeu apenas 65 por cento das suas necessidades de financiamento em 2020 e apenas 51 por cento das necessidades de financiamento para lidar com a COVID-19.

Enquanto o país tenta reconstruir as suas Forças Armadas e inicia a reforma do sector da segurança, observadores indicam que a presença de mercenários no país constitui um problema e não uma ajuda. “A RCA é muito mais do que um ‘vazio em termos de segurança’ na região,” reportou a Foreign Policy. “De facto, muitas das fontes de instabilidade do país vêm de fora. No entanto, a natureza do conflito cada vez mais internacional e o foco em soluções militares irão continuar a ofuscar as raízes socioeconómicas da insegurança da RCA.”  

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