EQUIPA DA ADF
Partindo de Mombasa para Nairobi, a controversa Linha Férrea de Bitola Padrão (SGR), do Quénia, acabou por representar tudo o que pode dar errado com as ligações financeiras complexas e, muitas vezes, ocultas dos países africanos com a China.
Os países africanos confrontam-se com perdas económicas acentuadas devido à pandemia da COVID-19, e as dívidas avassaladoras das infra-estruturas que têm com a China começaram a sufocar as suas economias. Empréstimos de elevadas taxas, acordos de confidencialidade que prejudicam a transparência pública e empréstimos que as autoridades chinesas continuam indispostas a reconfigurar são alguns dos desafios que os líderes africanos, no que diz respeito à economia, agora enfrentam.
Como resultado, os países encontram-se pressionados até ao limite do incumprimento ou, em alguns casos, para além dos limites. Enquanto os países enfrentam dificuldades de manter o ritmo do pagamento das suas dívidas, eles enfrentam também a possibilidade de os credores chineses arrestarem as suas linhas férreas, portos, pontes e outras peças de infra-estrutura que tiverem em outros lugares.
O empréstimo do Quénia para a linha férrea fez com que a empresa estatal Kenya Railways Corp. se tornasse na maior instituição devedora do país. A perda do valor do xelim queniano significa que os empréstimos denominados em dólar ficam a cada dia mais dispendiosos para reembolsar.
Uma análise do contrato dos caminhos de ferro de Quénia, feita pelo Instituto de Katiba, revelou que um incumprimento do seu empréstimo da Linha Férrea de Bitola Padrão pode resultar em as autoridades chinesas reivindicarem o direito sobre o porto, a linha férrea e outros activos como garantia.
Para complicar ainda mais a questão da Linha Férrea de Bitola Padrão, uma recente decisão do Tribunal de Recursos determinou que todo o empreendimento de 3,6 bilhões de dólares — o maior projecto de infra-estrutura que já existiu no Quénia — foi ilegal desde o princípio porque as autoridades não permitiram que houvesse propostas concorrentes para o trabalho.
Em vez disso, o Quénia assinou um contrato com a China Road and Bridges Corp., que também fez o estudo de viabilidade do projecto gratuitamente sob a condição de que fosse ela a receber o contrato, algo que os críticos consideram como um grande conflito de interesses. O governo recusou-se a tornar aquele contrato público.
“Esta foi uma aquisição pública que devia estar sujeita a um processo justo, competitivo e transparente,” Nelson Havi, presidente da Law Society of Kenya, disse à KTN News. A Law Society desafiou a legalidade da linha férrea no tribunal.
A decisão levanta dúvidas sobre o estatuto legal da dívida incorrida pelo Quénia como parte do projecto e das futuras operações dos caminhos de ferro.
O governo do Quénia comparticipou com 15% do financiamento da linha férrea. Os outros 85% são provenientes do Banco de Exportações e Importações da China, uma das três instituições estatais que a China considerou serem bancos comerciais. Ao todo, detêm quantias incalculáveis de bilhões de dólares em dívidas em toda a África, muitas vezes, cobrando taxas de juros muito mais elevadas do que os títulos do governo. Em muitos casos, os prazos desses empréstimos são mantidos em segredo como uma condição do contrato, um factor que dificultou que países como a Zâmbia recebessem alívio internacional de dívida.
Quando começou em 2014, a dívida da linha férrea chegava a cerca de 11% das receitas do governo. Isso aumentou quando o projecto acrescentou mais 120 quilómetros e 1,5 bilhões para Naivasha, a noroeste de Nairobi, em 2015.
No fim do período de graça de cinco anos, o pagamento anual da dívida duplicou o do ano passado para 640 milhões e está em vias de aumentar de novo em 2021-22 para 1 bilhão de dólares. Prevê-se que em 2020, a dívida do Quénia, incluindo os seus empréstimos da linha férrea, consuma aproximadamente metade das receitas do país.
Os adeptos continuam a afirmar que a linha férrea pagará por si própria, movimentando carga de e para o porto de forma mais rápida e por um custo menor em relação à rede de camionistas — uma afirmação que o conceituado economista David Ndii várias vezes questionou.
“A linha férrea foi vendida como um projecto economicamente viável, isto é, que pagaria por si própria,” escreveu Ndii no The Elephant em 2018. “Eu afirmei que a linha férrea não podia pagar, e que a dívida seria paga recorrendo a fundos públicos. E isto agora está a acontecer.”
O estudo de viabilidade económica da China Road and Bridges dizia que a linha férrea seria rentável através da movimentação de 22 milhões de toneladas de carga por ano, ou 20 comboios por dia — mais do que o dobro da capacidade operacional actual, de acordo com o estudo feito pelo Instituto Queniano de Pesquisas e Análises de Políticas Públicas.
Mesmo antes de a pandemia da COVID-19 ter sufocado a actividade económica global, a linha férrea estava a operar em cerca 65% abaixo das espectativas do governo, com receitas de cerca de 90 milhões de dólares e um custo operacional de 160 milhões de dólares. No início deste ano, o Quénia teve um incumprimento de um pagamento de 350 milhões de dólares à Africa Star, a subsidiária que faz a gestão da linha férrea, levantando a possibilidade de que partes da linha possam ser encerradas.
Com a linha férrea a funcionar no vermelho, os contribuintes do Quénia ficam paralisados com o pagamento por algo que possivelmente nunca gerará lucro, disse Havi.
“Este é um projecto em que se está a investir somas avultadas de dinheiro,” disse Havi. “Estes empréstimos serão pagos pelos quenianos.”