O Brigadeiro-General Daniel Kuwali serviu na Direcção de Serviços Jurídicos da Força de Defesa do Malawi (FDM) por 23 anos. Durante esse tempo, ele foi chefe dos serviços jurídicos e posteriormente foi nomeado primeiro Auditor Geral da FDM. Ele também serviu como conselheiro jurídico na missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo e ensinou e publicou várias obras sobre temas que incluem direitos humanos, uso da força e direito humanitário. Em 2022, graduou-se no curso residente como especialista internacional, no Colégio de Guerra do Exército dos EUA, e regressou ao Malawi onde foi nomeado primeiro comandante daquele país no Colégio de Defesa Nacional. Esta entrevista foi editada por questões de espaço e clareza.
ADF: O senhor graduou-se na Faculdade de Direito e posteriormente juntou-se à Força de Defesa do Malawi. Por que escolheu juntar-se ao exército em vez de optar por uma carreira jurídica no sector privado?
Kuwali: Pergunta interessante! Bem, em primeiríssimo lugar, foi e ainda é o meu patriotismo — o desejo de servir o meu país. Foi o facto de que eu seria capaz de dirigir o meu ensino, perícia e experiência para os serviços do meu país e o seu povo. Em segundo lugar, são os regimes de disciplina, aptidão física e de saúde mental obtidos no exército. Eles moldam uma pessoa para estar bem formada. Depois quando alguém se junta ao exército, descobre um enorme conjunto de familiares e amigos, a quem se tende a acarinhar. Então, de forma resumida, a minha paixão abnegada pelo serviço foi o factor impulsionador para servir o meu país.
ADF: Qual é a importância de ter uma estrutura jurídica forte nas operações do exército? Como é que isso contribui para a existência de forças armadas disciplinadas e responsáveis? Como é que isso ajudou a produzir confiança nos civis?
Kuwali: Quanto à sua primeira pergunta, o exército deve operar dentro da lei por causa dos princípios constitucionais do Estado de direito e responsabilização. Numa democracia, nenhuma pessoa ou instituição está acima da lei.
O que isso significa é que todas as pessoas podem ser responsabilizadas pelos seus actos ou omissões. Por isso, todos têm de agir dentro da lei, caso contrário, a sua conduta será tida como ultra vires ou fora dos limites legais e isso exige responsabilização. Quanto à segunda pergunta, como em qualquer desporto como o futebol, qualquer jogador que segue as regras do jogo é considerado disciplinado e profissional, ganhando, desta forma, o apoio dos fãs. Por exemplo, olhando para a conformidade com a lei de conflitos armados, os exércitos que se conformam com a lei alcançam economia de esforços, evitam cometer crimes e ganham a confiança e o respeito dos civis nas áreas da missão como em casa. Eventualmente, estes contribuem para o moral das tropas. A população civil, incluindo os legisladores, também está atenta para fornecer apoio às tropas de modo que não as envergonhe, mas, pelo contrário, levantem bem alto a bandeira.
ADF: O senhor serviu como conselho jurídico na missão da ONU na República Democrática do Congo (RDC). Que tipo de desafios únicos o senhor enfrentou lá?
Kuwali: A minha viagem de trabalho como soldado de manutenção da paz na RDC abriu-me a mente. Resumindo, ajudou-me a colocar a teoria em prática. Vi que as violações de direitos humanos não vêm em pacotes óbvios. Elas estão escondidas em plena vista, e é necessário um sentido de discernimento e habilidade para descobri-las. Por exemplo, ao vermos um bandido armado impedir que as pessoas sigam para a assembleia de voto, alguém pode não compreender que este criminoso está a infringir o seu direito de voto, a liberdade de movimento e até a ameaçar o seu direito à vida.
Eu enfrento dilemas desafiadores sobre o que um comandante do exército deve fazer se mulheres e crianças estiverem próximos de criminosos de guerra que têm como alvo os soldados de manutenção da paz. Será legítimo atacar tal escudo humano, onde os soldados de manutenção da paz foram mortos? Como lidar com um prevaricador habitual que esteve a aterrorizar uma aldeia e escapa-se de um centro de detenção sem estar armado? Será que o soldado dispara para matar ou ferir, ou será que não chega a disparar? Estas não são perguntas académicas. Nem sequer são simplesmente perguntas jurídicas; elas também têm implicações políticas. Como um conselheiro jurídico, deve-se aconselhar em questões de segundos. Isso requer que a pessoa esteja preparada.
ADF: Houve um recente aumento no número de golpes de Estado no continente. Como é que explica esta tendência?
Kuwali: Os golpes de Estado militares ocorreram onde as tropas capitalizam o descontentamento civil para tomar o poder das autoridades civis, conforme foi o caso no Sudão, em 2019. Em outros casos, como na Guiné, em 2021, os líderes procuram apegar-se ao poder, desprezam o processo eleitoral e fazem emendas na Constituição para prorrogar os seus mandatos.
Estas acções aumentaram o apoio do público para que o exército assumisse o poder. Embora não possa existir uma explicação única para todos os casos para justificar a proliferação de golpes de Estado, os factores casuais incluem a pobreza, a insegurança e a má governação.
Outros factores contribuintes são a corrupção endémica, a má gestão económica, os deficits de infra-estruturas, os sistemas socioeconómicos fracos e uma juventude frustrada. África experimentou 82 golpes de Estado entre 1960 e 2000, antes da criação da União Africana. Entre 2000 e 2022, o continente testemunhou 22 golpes de Estado. Esta é uma tendência preocupante.
ADF: Vê alguma semelhança entre estes países? Acha que os golpes de Estado são “contagiosos” e tornam-se mais prováveis regionalmente ou a nível do continente quando um deles ocorre?
Kuwali: Os golpes de Estado envolvem cálculos de custos e benefícios pelos conspiradores. O benefício óbvio inclui poder e acesso a recursos do Estado. Os custos incluem o risco de morte e de serem processados e detidos. Os golpes de Estado têm um efeito dominó de forma tal que um golpe de Estado bem-sucedido aumenta significativamente a probabilidade de golpes de Estado subsequentes naquele país e nos países vizinhos. Sendo assim, se os golpistas agirem com impunidade, a trajectória de tomadas de poder militar irá continuar.
Embora a União Africana tenha proibido mudanças inconstitucionais de governo, a sua resposta aos recentes golpes de Estado reflecte uma decisão decadente na aplicação das normas de combate a golpes de Estado, que é um dos princípios fundamentais — completo com sanções — contra os prevaricadores. A menos que a União Africana demonstre uma decisão de condenar mudanças inconstitucionais de governo, isso irá promover uma recessão democrática regional. A União Africana deve fazer cumprir o Artigo 25 da Carta Africana da Democracia, Eleições e Governação, impondo sanções de forma consistente e enviando os perpetradores de golpe de Estado para serem julgados sem excepção.
ADF: Como um estudante de história, o que é que viu como ramificações a curto prazo e a longo prazo num país que experimenta um golpe de Estado?
Kuwali: Os golpistas geralmente prometem reverter a tendência e fornecer dividendos socioeconómicos aos cidadãos. Contudo, existem poucas ou nenhumas provas de que os golpes de Estado melhoram a governação e o desenvolvimento económico. O oposto é que acontece. Não se pode esperar que aqueles que infringiram a lei em primeiro lugar venham a seguir a lei. A gestão de um país exige liderança, competência e habilidade, para além de campanhas, estratégia e tácticas militares. Os golpes de Estado não podem ser soluções para a incapacidade da democracia de garantir bens públicos e segurança às pessoas. Estes estratagemas são a própria antítese de uma cultura democrática. Sendo assim, os golpes de Estado devem ser condenados como uma questão de princípio.
ADF: Quais são os factores comuns nos países como Malawi que evitaram transferências não democráticas de poder? Será que eles partilham alguma característica?
Kuwali: Os países que detestam golpes de Estado e transferências não democráticas de poder possuem instituições de supervisão fortes, que verificam os excessos do executivo e mantêm o Estado de direito. Isso se deve a um judiciário independente, legislatura centrada no povo, imprensa vibrante e organismos eleitorais independentes. Esses países também não prendem os defensores de direitos humanos. Eles criam mecanismos de prevenção de conflitos e uma governação do sector de segurança robusta.
Eles tendem a ter relações civis-militares saudáveis e respeito pelo controlo democrático das forças armadas.
É um infortúnio que o recente aumento nos golpes de Estado tenha manchado as transferências de poder bem-sucedidas em muitos países que mantêm o constitucionalismo. Estes incluem a maior parte dos países da África Austral, as democracias estáveis da África Oriental, especialmente Tanzânia, e as maiores democracias da África Ocidental, como Gana, Nigéria e Senegal.
ADF: Numa perspectiva militar, o que pode ser feito em termos de treino, ensino militar profissional e reforma do sector de segurança para conter a tendência dos golpes de Estado?
Kuwali: Se mergulharmos mais profundamente, iremos observar que a maior parte destes golpistas cai fora da cobertura de líderes formados para a governação do sector de segurança. Tal formação seria como se estivesse a pregar aos convertidos. Por conseguinte, será prudente lançar a rede de forma mais ampla, para garantir que os soldados — de qualquer que seja o escalão ou responsabilidade — compreendam e mantenham princípios de controlo civil do exército. Por sua vez, as autoridades civis e os líderes políticos devem aumentar a sua compreensão do sector de segurança e facilitar as promoções periódicas e meritórias, os processos de recrutamento transparentes e a formação adequada para reter a confiança das forças armadas.
ADF: Então, os membros de escalões inferiores das forças armadas não têm acesso suficiente à formação estratégica?
Kuwali: O desafio que existe na disposição de um exército é que existe o nível estratégico, o nível operacional e o nível táctico. Isso tem os seus próprios desafios no sentido de que as questões sobre a governação do sector de segurança não são ensinadas no nível táctico. No nível operacional, as tropas — que são a maior parte das pessoas que estiveram envolvidas nos golpes de Estado — não conhecem os problemas da governação do sector de segurança ou problemas relacionados com o controlo civil das forças armadas. A minha sugestão é que precisamos de começar a ensinar essas questões a esse nível de modo que os soldados possam crescer compreendendo-as. Deve ser um estilo de vida respeitar as autoridades civis como pessoas que controlam o exército. Porque estas são pessoas eleitas pelos cidadãos para assumirem tais cargos. Deve ser uma forma de vida respeitar isso, porque isso é o que devemos fazer numa democracia. Não devemos apenas começar quando os líderes já subiram bem alto nos escalões. Diz-se que não se deve ensinar novos truques a um cão velho. Por isso, quanto mais cedo começarmos, melhor. Neste caso, teremos uma massa crítica de pessoas que compreendem os princípios democráticos.
ADF: Quais são os seus objectivos a curto prazo para liderar o Colégio de Defesa Nacional (NDC) do Malawi, que em breve será criado?
Kuwali: O meu objectivo a curto prazo é ter um currículo sólido e abrangente, que irá olhar para as necessidades da Força de Defesa do Malawi e do Malawi como país, assim como olhar para a FDM, juntamente com os seus aliados, para poderem combater as ameaças contemporâneas. Em segundo lugar, temos de garantir que o colégio seja criado. Já identificámos um lugar, mas, estamos à espera de procedimentos do governo. Quando tivermos feito isso, irei organizar uma equipa para ministrar os cursos.
ADF: Quais são os seus objectivos a longo prazo?
Kuwali: Os meus objectivos a longo prazo são ter cada mais participantes nos cursos possíveis, que podem passar pelos corredores do NDC, no Malawi, e também ter a instituição como centro de excelência. Deve ser uma instituição de preferência dos líderes, não apenas no Malawi, mas no continente todo. Também queremos ter o nosso próprio nicho. Devemos desenvolver estratégias de guerra indígenas para ver como podemos trazer-lhes melhorias. Não podemos apenas adoptar estratégias que já funcionaram em outros lugares.
Temos de cavar mais profundo na história militar dos países africanos, porque, muitas vezes, somente olhamos para as guerras do mundo para tirar lições. Temos de olhar para as nossas próprias guerras, para ver o que as motivou e como elas terminaram. Ao fazer isso, iremos encontrar as nossas próprias formas indígenas ou tradicionais de resolver os conflitos. Para além disso, queremos desenvolver mecanismos de prevenção de conflitos. Os Estados vizinhos não devem olhar uns aos outros como ameaças; têm de ver-se como vizinhos. Devemos ter exercícios para a resolução de conflitos como parte da nossa estratégia de construção da confiança no continente africano.